
A tradução mais simples da expressão guarani “tekoha” é aldeia. Mas para os indígenas desta etnia, há um conceito mais amplo por trás disso. Tekoha é um lugar onde se cultiva a própria cultura. Onde se pode ser o que se é. Desafio grande para os povos originários, que chegam em 2025 lutando para que a própria cultura não se apague.
Hoje, a população indígena em Santa Catarina é de 21.773 pessoas, dividida em três etnias: a própria Guarani, a Kaingang e a Xokleng. Cada uma com seus costumes e idiomas. Mas há um elo entre elas: para as três, a terra e a natureza são sagradas.
A historiadora e arqueóloga indígena Walderes Coctá explica da seguinte forma:
— A nossa relação com a natureza é uma relação de respeito. E quando a gente respeita a natureza, isso é recíproco. A natureza também nos respeita. E dessa forma ela também nos dá tudo que precisamos para sobreviver.
A sensação de pertencimento do povo indígena com a terra se fortalece sempre que há a conquista de uma demarcação territorial. Hoje, segundo o IBGE, há 21 terras oficialmente registradas pela Funai em SC. Dos indígenas catarinenses, 49,6% residem nelas.
Mas em 16 áreas do nosso mapa estadual, comunidades ainda tentam homologação junto ao Ministério dos Povos Indígenas. Homologar um território é vencer uma burocracia longa. Mas quando acontece, rende frutos.
O projeto Zag é um exemplo disso. Criado há cinco anos pelo casal Nduzi e Isabel Gakran, ele tem como propósito fazer com que as araucárias deixem de fazer parte da lista de espécies vegetais ameaçadas de extinção. Para os indígenas Xokleng, etnia da qual eles fazem parte, a árvore é sagrada. Diante da ameaça iminente, eles decidiram agir.
— Nós mesmos decidimos plantar, como faziam nossos ancestrais. E aí chamamos amigos, começamos a colher o pinhão e isso foi tomando força e a gente foi percebendo que não só a gente tá resgatando a árvore, como a nossa cultura, a língua e até mesmo a nossa tradição no território. É uma demarcação de território também — explica Isabel Gakran.
O projeto se concentra na terra indígena Ibirama (que fica entre as cidades de Vitor Meireles, Doutor Pedrinho, José Boiteux e Itaiópolis). Mas já foi responsável, desde o início, pelo plantio de 100 mil mudas da espécie em territórios de SC e do RS.
Por conta do projeto, Nduzi conta que ele e a esposa já foram para os Emirados Árabes, Dubai e até mesmo para a sede da Organização das Nações Unidades (ONU) em Nova Iorque.
— Até aula de inglês a gente tá fazendo — conta Nduzi.
Tudo isso porque, para os indígenas, proteger a própria terra é missão de vida. E sempre que uma demarcação é feita, o sentimento de pertencimento aumenta, transbordando através de ações como esta.
Comunidades urbanas
Se 49,6% dos indígenas de SC residem em terras próprias, todo o restante está fora delas. E a maioria em comunidades urbanas. Algumas em caráter de ocupação. É o que ocorre hoje na Via Expressa de Blumenau. A via de trânsito rápido abriga em uma de suas marginais uma comunidade Kaingang de 20 famílias. O cacique Alceu Salvador já esteve nesta mesma região, quando criança, com a mãe.
— Eu tinha sete anos quando eu vivi aqui junto com a minha mãe. Na época, o governo vinha proibir a gente de usar o banheiro da rodoviária perto daqui. Aí não tinha nem onde a gente fazer necessidade. Foi uma guerra — relembra.
O povo do qual ele faz parte, o Kaingang, têm hábitos migratórios. Depois dessa experiência, na infância, ele e a família passaram por outros estados, mas voltaram. E hoje vivem um desafio para eles próprios e para o poder público.
O terreno é improvisado. Água encanada não existe. O banho é em uma espécie de cabana. A água vem de um reservatório que a prefeitura abastece com caminhão pipa. Mas não há energia elétrica para esquentá-la. E sem luz, as crianças fazem a tarefa de casa sob luz de velas.
A comunidade pede que o espaço seja regularizado. Alega que a terra, historicamente, os pertence. A prefeitura de Blumenau, por outro lado, tenta desde 2023 tirá-los dali. Naquele ano, ingressou com uma ação civil pública na justiça, pedindo à FUNAI a realocação da aldeia para um local adequado. A ação segue em andamento e a prefeitura aguarda a decisão.
Maior comunidade urbana do país fica no Centro-Oeste
Se é desafiador gerir uma pequena comunidade urbana, o que dizer da maior delas. Coincidentemente, considerada também, a maior terra indígena do país: Dourados, localizada no estado de Mato Grosso do Sul.
O território foi criado em 1917 para abrigar indígenas Kaiowá, como forma de resolver o problema urbano da época. Não demorou muito e indígenas de outras etnias começaram a ser levados pelo governo para lá também. A terra ficou pequena para uma população tão grande.
Hoje, Dourados conta com unidades básicas de saúde, escolas e outros serviços públicos próprios erguidos dentro da terra indígena, que já não dão mais conta da população de 23 mil habitantes. Os problemas, segundo o coordenador de extensão da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Osvaldo Nunes, passam pela questão da segurança, saúde e educação. Isso mostra que a homologação de terras é a resolução para parte dos problemas, mas que não resolvem a totalidade deles.
Em SC, terras cortadas por obras
Mesmo sendo demarcadas, duas das maiores terras indígenas catarinenses hoje são cortadas por importantes obras. No caso da terra Ibirama, no Alto Vale do Itajaí, é a barragem de José Boiteux — a maior do Estado. Já na terra Morro dos Cavalos, na Grande Florianópolis, o desafio é a rodovia mais movimentada do Estado, a BR-101, que além de dividir a terra em duas, carece de duplicação para melhoria do tráfego.
A professora Miriam Pripra, indígena Xokleng, lembra de quando a barragem de José Boiteux começou a ser construída, em 1976.
— Eles entraram, chamaram o cacique da época, avisando que iam fazer a barragem, que seria bom para nós indígenas porque viriam empregos, desenvolvimento. E que não ia prejudicar ninguém — relembra.
Mas na primeira chuva forte após a inauguração da estrutura, a terra alagou. Miriam recorda:
— Desceram todas as casas que eram à beira do rio. Quem tinha criação de porco, de galinha, perdeu. Morreu tudo na água. Quando eu conto, ainda parece que eu estou escutando as pessoas gritando, chamando pra ajudar.
O presidente da Associação Indígena Cocta Camlem, Couvi Gilberto Calem, garante:
— Nós não somos contra a barragem. Só queremos nossos direitos.
Com os anos passando, acordos e mais acordos foram assinados entre indígenas e estado, para tentar recompensar a comunidade pelas perdas.
Há dez anos, uma decisão judicial cobra do Estado obras compensatórias, como a construção de rotas de fuga e de novas casas para quem perdeu as que tinha. No caso das casas, segundo a Defesa Civil de SC, os recursos para a construção de 43 delas já foram encaminhados às prefeituras de Vitor Meireles e José Boiteux para que ambas providenciem a construção. Esse seria o início do cumprimento do pedido judicial.
No caso do Morro dos Cavalos, a cacique Eliara Antunes também afirma não ser contrária às obras de duplicação da BR-101. Até hoje, o projeto que mais avançou — para dar mais vazão aos 60 mil veículos que trafegam neste trecho diariamente — é a construção de um túnel. O projeto até foi licitado, mas engavetado por falta de recursos. Enquanto isso, as pistas marginais foram mexidas e convertidas em segundas faixas. E isso já ultrapassa limites que a comunidade está disposta a aceitar.
— Nós temos casas de famílias indígenas morando do lado da BR. Então, quando se tenta alargar as faixas, ela vai estar passando na frente do terreno de uma casa — afirma a cacica.
Em nota, a Arteris diz que cabe à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) fazer estudos de melhorias na via e que está acompanhando eles, uma vez que, no contrato atual, não estão previstas obras de melhorias naquele trecho.
O que os indígenas esperam do futuro?
Entre os indígenas catarinenses, prevalece a opinião de que só com uma educação que valorize a cultura indígena é que as novas gerações poderão manter as próprias tradições no futuro.
Na aldeia Bugio, que fica em José Boiteux, há uma escola que trabalha assim. O diretor Osia Tukun Patté explica que ela é necessária para os 105 alunos — todos indígenas — e para os professores, também indígenas. Mas o trabalho é dobrado.
— A gente tem que trabalhar duas realidades. Indígena e não indígena. Então quando eu trabalho a história, eu tenho que trabalhar a questão da história do Brasil e também trabalhar a questão histórica indígena — afirma o diretor.
A aluna Kóziklã Pripra, de 15 anos, está no ensino médio dessa escola. Deseja ser pedagoga ou pediatra. Mas, para isso, vai ter de deixar a aldeia para concluir os estudos. Ela teme não conseguir voltar, por conta do mercado de trabalho.
— Aqui a gente não consegue ter o aprendizado do curso que eu quero fazer. E vai ser muito complicado, porque a nossa cultura já está se apagando. A gente tem que fazer a revitalização — afirma.