Por que a ciência brasileira corre risco de sofrer “apagão” em 2021

ciência

Abandonado foi como o professor e biólogo Anderson Ricardo Carlos se sentiu quando perdeu a bolsa do doutorado de seus sonhos. Mestre em Ensino e História das Ciências e Matemática pela Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Paulo, o pesquisador ingressou no programa de doutorado da Universidade de São Paulo (USP) em janeiro de 2020. Logo em seguida, participou do processo seletivo para pleitear uma bolsa oferecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Era o único auxílio da Capes previsto para o ano passado ao projeto de pós-graduação do qual Anderson faz parte, o Programa Interunidades no Ensino de Ciências da USP. Considerado muito bom, o curso é avaliado com nota 5 pela Coordenação, em uma escala que vai de 1 a 7.

Foi com alegria que Anderson recebeu a notícia de que havia conquistado o primeiro lugar do processo seletivo. Junto à sua orientadora, rapidamente assinou a documentação para passar a receber a bolsa de R$ 2.200 mensais concedida aos doutorandos — valor que não é reajustado desde 2013. Com o auxílio (aparentemente) garantido, o biólogo decidiu pedir demissão de um de seus dois empregos como professor e estava pronto para se dedicar quase exclusivamente à pesquisa.

Anderson se mudou de Santo André, na grande São Paulo, para a capital, ficando mais perto do Instituto de Biociências da USP, onde desenvolve o estudo. Ele está analisando a trajetória do controverso médico brasileiro João Batista de Lacerda (1846-1915). Sua investigação aborda como a ciência foi usada no passado para corroborar ideias racistas — o branqueamento da população, por exemplo, era uma das propostas defendidas por Lacerda. “É um tema que pode ser usado em sala de aula, ajudar a discutir o racismo e combater o discurso de ódio”, define.

Em março, porém, os planos do biólogo viraram de cabeça para baixo. Ele não só teve que lidar com o início da pandemia como também com a notícia de que a Capes havia publicado a Portaria 34, estabelecendo novos critérios para a distribuição de bolsas de pós-graduação. Sem justificativas, seu auxílio foi cancelado. A única informação que o cientista recebeu é que sua bolsa havia passado de permanente para um modelo de empréstimo. Nesse caso, após a conclusão da pesquisa, a verba que a Capes havia destinado ao programa não seria renovada para um novo projeto — como acontece na modalidade permanente.

Segundo um levantamento feito pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), 8.121 cotas de auxílio permanentes foram perdidas em 2020 com a mudança. Enquanto 77.629 pós-graduandos receberam a bolsa em 2019, apenas 69.508 conseguiram o mesmo no ano passado, uma queda de 10,4%. Embora a Capes tenha justificado a mudança como uma forma de beneficiar estados menos desenvolvidos do país, o que a SBPC observou é que as regiões Sul, Centro-Oeste, Norte e Nordeste tiveram uma diminuição média nas bolsas de 14%, e o Sudeste só perdeu 7%.

Acontece que, por menor que seja, o auxílio é fundamental para o trabalho de cientistas, independentemente do nível acadêmico. “Ele é praticamente o nosso salário como pesquisador, nossa profissão — e nós não temos direito trabalhista nenhum”, lembra

Anderson. Sem bolsa e com apenas um emprego de professor, o biólogo teve que voltar a morar com os pais, que vivem em Jundiaí, no interior paulista. Foi apenas em outubro, dez meses após iniciar o doutorado, que ele conseguiu um novo apoio à sua pesquisa, dessa vez pela Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), no mesmo valor da bolsa concedida pela Capes. “Agora a situação melhorou, mas ainda dá medo de sofrer novos cortes”, desabafa.

 

Crise sem fronteiras

Os cortes também ultrapassaram os limites do país e atingiram pesquisadores brasileiros que trabalham no exterior. A historiadora Franciele Becher está entre eles. Doutoranda da Universidade Paris 8, na França, ela foi bolsista da Capes por dois anos e, em maio de 2020, solicitou a prorrogação do auxílio por mais um ano para conseguir concluir sua tese. O pedido, no entanto, foi recusado por falta de verba. Ao recorrer da decisão, em junho, ela conseguiu a aprovação de apenas quatro meses de bolsa. “Geralmente, a Capes concede até 48 meses e, até então, eu só havia recebido 24. Esperava que, com as justificativas da prorrogação devidamente apresentadas, eles poderiam ter aprovado o tempo integral solicitado”, conta Becher.

Em Paris, a historiadora trabalha com arquivos de dois centros de observação para menores infratores inaugurados durante a Segunda Guerra Mundial. Em locais como esses, jovens passavam, em média, três meses sendo avaliados por médicos e psicólogos antes que o juiz desse a pena sobre os crimes cometidos — que eram os mais variados. Nesse período, as crianças e os adolescentes produziam redações e desenhos que hoje podem ajudar a reconstruir a história da juventude durante o conflito histórico e alguns eventos da guerra. Ao todo, Becher encontrou mais de 600 textos, 150 ilustrações e 20 mil páginas de documentos — totalizando 716 casos a serem analisados por sua tese.

Além do grande volume de material, Becher ainda teve de esperar cerca de um ano para que o governo francês desse acesso às fontes de que precisava para a pesquisa, prolongando o estudo. “A tese atrasou por um motivo alheio à minha vontade e eu perdi meu financiamento no momento em que ia começar a escrevê-la”, afirma. Percebendo que não teria mais parcelas aprovadas, em outubro de 2020, a historiadora solicitou a prorrogação da bolsa sem ônus — e dessa vez, teve seu pedido aceito. Becher recebeu a última parcela do pagamento em dezembro e, desde janeiro deste ano, trabalha em sua pesquisa sem receber auxílio algum, dependendo de algumas economias e do salário de seu namorado, que trabalha como músico, para viver na capital francesa.

 

Ao colapso

“É uma situação muito crítica”, avalia o físico Ildeu de Castro Moreira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da SBPC. “Estamos tendo uma redução de recursos muito acentuada na área de Ciências, Tecnologia e Inovação nos últimos anos”. Para Moreira, a decadência começou a partir de 2015 e se acelerou muito em 2020 — e, acredite, a perspectiva para este ano é de piora. Em 2019, o orçamento da Capes foi de aproximadamente R$ 4,2 bilhões e, em 2020, reduzido a R$ 2,8 bilhões. Para 2021, estão previstos R$ 1,9 bilhão.

 

 

Outras instituições de apoio à pesquisa também estão passando aperto. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por exemplo, tem um orçamento previsto de apenas R$ 560 milhões para 2021 e está dependendo da aprovação do Projeto de

Lei do Orçamento (PLOA) para que a verba atinja os R$ 1,2 bilhão repassados nos últimos anos. “A capacidade de investimento em pesquisa e em bolsas está muito aquém do que já foi um dia e do que é necessário”, analisa a historiadora Flávia Calé, presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG). “Neste ano, temos um risco real de ter um apagão na ciência, pois o que se propõe para o orçamento de 2021 é desolador.”

Entre outras causas, os cortes são reflexo do contingenciamento do Fundo Nacional desesenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Criado em 1969, ele tem financiado a inovação brasileira por décadas, contribuindo com bolsas para a formação de pesquisadores em todo o país e no exterior, além da construção de grandes projetos, como o acelerador de partículas Sirius e o supercomputador Santos Dumont.

No entanto, desde a adoção da reserva de contingência, em 2017, a maior parte da verba do FNDCT não pode ser destinada para o financiamento das ciências e tecnologias nacionais. Em 2020, R$ 4,2 bilhões ficaram congelados, e a previsão para 2021 é de que a soma chegue a R$ 4,8 bilhões.

Em 2019, a comunidade científica conseguiu convencer deputados de todos os partidos para que fosse aprovado o Projeto de Lei Complementar nº 135/2020, que veta a limitação de recursos financeiros destinados a ciência e tecnologia (C & T). Na Câmara, foram 358 votos a favor do PL contra 18. No Senado, a proposta foi aprovada por 71 votos, com apenas um contra. Em 13 de janeiro de 2021, no entanto, o presidente Jair Bolsonaro aprovou o projeto com vetos, impedindo que a verba do fundo seja descongelada e usada para sustentar a ciência do país. “No mundo inteiro, os governos apostam na inovação, enquanto aqui só se fala em cortar verbas”, desabafa Moreira. “O papel do Estado é fundamental, mas o que nós vemos é que o Estado está abrindo mão de apoiar a pesquisa científica e tecnológica brasileira, deixando de apoiar também a infraestrutura das universidades e institutos de pesquisa e a formação de pessoal qualificado.”

Em resposta, a SBPC criou a campanha #CiênciaSalva, a fim de ressaltar a importância da área para o avanço do país, e encabeçou um abaixo-assinado contra os vetos impostos pela presidência. A petição foi endossada por mais de 130 mil pessoas.