Dados preliminares de um estudo conduzido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sugerem que a covid-19 \u2013 mesmo nos casos leves \u2013 pode alterar o padr\u00e3o de conectividade funcional do c\u00e9rebro, causando uma esp\u00e9cie de \u201ccurto-circuito\u201d no \u00f3rg\u00e3o.<\/p>\n

As conclus\u00f5es se baseiam em exames de resson\u00e2ncia magn\u00e9tica funcional (com sequ\u00eancia de repouso) feitos em 86 volunt\u00e1rios que j\u00e1 haviam se curado da infec\u00e7\u00e3o h\u00e1 pelo menos dois meses. Os resultados foram comparados com os de 125 indiv\u00edduos que n\u00e3o tiveram a doen\u00e7a e serviram como controle.<\/p>\n

\u201cNo c\u00e9rebro normal, determinadas \u00e1reas est\u00e3o sincronizadas durante uma atividade, enquanto outras est\u00e3o em repouso. J\u00e1 no caso desses indiv\u00edduos que tiveram covid-19, notamos uma perda severa da especificidade das redes cerebrais. Tudo est\u00e1 conectado ao mesmo tempo e isso provavelmente leva o c\u00e9rebro a gastar mais energia e trabalhar de forma menos eficiente\u201d, conta Clarissa Yasuda, professora da Faculdade de Ci\u00eancias M\u00e9dicas (FCM-Unicamp) e integrante do Instituto de Pesquisa sobre Neuroci\u00eancias e Neurotecnologia (BRAINN), um Centro de Pesquisa, Inova\u00e7\u00e3o e Difus\u00e3o (CEPID) da FAPESP (Funda\u00e7\u00e3o de Amparo \u00e0 Pesquisa do Estado de S\u00e3o Paulo).<\/p>\n

Os dados \u2013 ainda n\u00e3o publicados \u2013 foram apresentados por Yasuda ontem durante o s\u00e9timo BRAINN Congress. O estudo ainda est\u00e1 em andamento e o grupo tem a inten\u00e7\u00e3o de incluir mais participantes. A ideia \u00e9 acompanhar os desdobramentos cerebrais da infec\u00e7\u00e3o pelo SARS-CoV-2 durante ao menos tr\u00eas anos.<\/p>\n

Segundo Yasuda, ainda n\u00e3o se sabe de que modo o v\u00edrus causa essa altera\u00e7\u00e3o na conectividade cerebral, mas h\u00e1 algumas hip\u00f3teses a serem investigadas. \u201c\u00c9 poss\u00edvel que a infec\u00e7\u00e3o prejudique parte das redes neurais e, para compensar a falha no sinal, o c\u00e9rebro ative outras redes simultaneamente. Essa hiperconectividade pode tamb\u00e9m ser uma tentativa do c\u00e9rebro de restabelecer a comunica\u00e7\u00e3o nas \u00e1reas afetadas\u201d, diz a pesquisadora.<\/p>\n

Outra hip\u00f3tese a ser estudada pelo grupo da Unicamp \u00e9 se esse estado de disfun\u00e7\u00e3o cerebral tem rela\u00e7\u00e3o com alguns dos sintomas tardios da covid-19 relatados por diversos pacientes, como fadiga, sonol\u00eancia diurna e altera\u00e7\u00f5es de mem\u00f3ria e concentra\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

\u201cPretendemos comparar o funcionamento cerebral de pacientes que apresentam esses sintomas tardios com o de pessoas que se curaram da doen\u00e7a e ficaram sem sintomas. Se essa rela\u00e7\u00e3o entre hiperconectividade e sintomas neuropsicol\u00f3gicos persistentes se confirmar, poderemos pensar em drogas e outros tratamentos capazes de amenizar o quadro\u201d, conta \u00e0 Ag\u00eancia FAPESP.<\/p>\n

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Altera\u00e7\u00f5es<\/h3>\n

A pesquisa come\u00e7ou no segundo semestre de 2020, com um question\u00e1rio on-line respondido por mais de 2 mil pessoas de todo o pa\u00eds. Foram inclu\u00eddos apenas indiv\u00edduos com a doen\u00e7a confirmada por teste de RT-PCR, e aproximadamente 90% n\u00e3o precisaram de tratamento hospitalar (apenas tratamento domiciliar). Nessa fase, os participantes relataram os sintomas que estavam vivenciando cerca de dois meses ap\u00f3s o diagn\u00f3stico. Os mais comuns foram fadiga\/cansa\u00e7o (53,5%), cefaleia (40,3%) e altera\u00e7\u00e3o de mem\u00f3ria (37%).<\/p>\n

Ap\u00f3s seis meses, tamb\u00e9m por meio de question\u00e1rio on-line, 642 participantes relataram ainda sofrer com os sintomas tardios da doen\u00e7a, entre eles fadiga\/cansa\u00e7o (59,5%), sonol\u00eancia diurna (36,3%), altera\u00e7\u00f5es de mem\u00f3ria (54,2%), dificuldade de concentra\u00e7\u00e3o (47%) e para realizar as atividades di\u00e1rias (23,5%). Al\u00e9m disso, 41,9% relataram sintomas de ansiedade \u2013 um percentual bem acima da m\u00e9dia da popula\u00e7\u00e3o brasileira, que \u00e9 em torno de 10%.<\/p>\n

Parte dos volunt\u00e1rios foi avaliada presencialmente pelos pesquisadores e submetida a testes neuropsicol\u00f3gicos \u2013 para avaliar fun\u00e7\u00f5es cognitivas como mem\u00f3ria e aten\u00e7\u00e3o \u2013 e exames de resson\u00e2ncia magn\u00e9tica, que permitiram analisar de forma n\u00e3o invasiva tanto a subst\u00e2ncia cinzenta do c\u00e9rebro (onde fica o corpo dos neur\u00f4nios) como a chamada subst\u00e2ncia branca (onde ficam os ax\u00f4nios e c\u00e9lulas gliais). As avalia\u00e7\u00f5es foram feitas ap\u00f3s o termino da fase aguda, em m\u00e9dia 55 dias ap\u00f3s o diagn\u00f3stico.<\/p>\n

\u201cAjustamos os resultados dos testes neuropsicol\u00f3gicos de acordo com a idade, o sexo e a escolaridade do participante. Foi poss\u00edvel perceber que os indiv\u00edduos com sintomas tardios da covid-19 tiveram um desempenho cognitivo abaixo do esperado. Eles se saem pior que a m\u00e9dia dos indiv\u00edduos brasileiros em algumas tarefas\u201d, conta Yasuda.<\/p>\n

J\u00e1 os exames de imagem revelaram que algumas regi\u00f5es do c\u00f3rtex dos volunt\u00e1rios tinham espessura menor do que a m\u00e9dia observada nos controles \u2013 entre elas \u00e1reas relacionadas com a ansiedade. Outras regi\u00f5es apresentavam aumento de tamanho, o que pode estar relacionado com o incha\u00e7o decorrente da infec\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Mais recentemente, por uma t\u00e9cnica conhecida como tractografia, os pesquisadores notaram que tamb\u00e9m havia les\u00f5es na microestrutura da subst\u00e2ncia branca. Ainda n\u00e3o se sabe, por\u00e9m, quais as implica\u00e7\u00f5es desse achado.<\/p>\n

\u201cNingu\u00e9m sabe ao certo de que forma o v\u00edrus afeta o c\u00e9rebro: se \u00e9 um dano indireto, relacionado \u00e0 inflama\u00e7\u00e3o, ou se est\u00e1 diretamente ligado \u00e0 infec\u00e7\u00e3o das c\u00e9lulas cerebrais\u201d, comenta a pesquisadora. \u201cDe qualquer forma, os achados s\u00e3o surpreendentes e um pouco assustadores. Creio que j\u00e1 est\u00e1 bem claro que a covid-19 n\u00e3o se trata apenas de uma gripe.\u201d<\/p>\n

Interessados em participar do estudo podem entrar em contato com o grupo da Unicamp por este endere\u00e7o. S\u00e3o eleg\u00edveis todos os indiv\u00edduos que tiveram covid-19, ainda que sem queixas residuais.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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