Baía de Zimbros: história e resistência marcam comunidade pesqueira

Exuberante há mais de cinco séculos a Baía de Zimbros, na costa catarinense, resiste. Natural e gentilmente abraçada por dois morros e com pouco mais de dois quilômetros de faixa litorânea, Zimbros possui diversos ecossistemas do bioma Mata Atlântica que convivem em harmonia, numa simbiose perfeita da vida que nutre a vida.

Localizada do lado sul da península que forma o município de Bombinhas (SC), a Baía de Zimbros possui águas calmas e praias de areia fina, protegidas pelo Parque Natural Municipal do Morro do Macaco, à esquerda, e do lado direito pelo Parque Municipal Costeira de Zimbros.

Na Baía de Zimbros, para olhares mais atentos, é possível perceber a riqueza e a diversidade do patrimônio natural, que apresenta diversos ecossistemas, entre eles restinga, manguezais, costões rochosos e floresta ombrófila densa. As árvores servem de ninho e alimento para as aves, que generosamente retribuem fazendo o plantio de sementes nativas. Borboletas, flores e frutos típicos ainda são abundantes nas áreas de vegetação preservadas.

Ao pé da Costeira, rochas cravejadas de mexilhões. Seguindo o morro pelo oceano, é possível visitar praias ainda desabitadas, com diferenças entre si, tanto na areia quanto na energia das ondas – das piscinas naturais às praias de tombo. Também vem da Costeira de Zimbros, mais especificamente da Praia Triste, a água potável que serve ao bairro de Zimbros. Manter a Costeira à salvo da especulação imobiliária e de qualquer tipo de imposição socioeconômica em desrespeito para com a legislação ambiental, une moradores e ambientalistas locais em uma defesa ferrenha do meio ambiente, dificilmente vista com tamanha organização, força e poder de embate.

No percurso da Praia de Zimbros parte da vegetação rasteira sobre a areia mantém-se presente (preservada ou plantada pelos moradores). Um charme à parte é a flor da açucena, que saúda os visitantes, sob a sombra de um frondoso pé de jamelão.

É justamente este ecossistema e sua diversidade que fazem parte das aulas diárias da Escola do Mar, um programa da Secretaria Municipal de Educação de Bombinhas, voltado aos estudantes da rede pública, no contraturno escolar. Desde 2018, os aspectos ecológicos da Baía de Zimbros vêm sendo explorados como parte da proposta pedagógica da Escola do Mar.

Crianças e adolescentes, a partir do quinto ano do ensino fundamental, participam de uma formação ampla, criativa e engajada, que contempla os principais aspectos socioeconômicos locais, entre eles a pesca artesanal, a maricultura e o turismo, costurados com os saberes ancestrais, com a presença dos mestres em diversas artes e ofícios, como a confecção de redes e cestaria, e a culinária. Aulas de natação, educação ambiental e geração alternativa de renda completam o processo de ensino-aprendizagem.

Para Silvana Leone, coordenadora da Escola do Mar, o grande desafio é fazer com que as novas gerações conheçam sua identidade e se apropriem dela, criando meios para que o desenvolvimento do município ocorra em sintonia com a preservação dos recursos socioambientais não só da Baía de Zimbros, mas de todo o patrimônio natural que possui. “Por meio do conhecimento, nos tornamos pessoas empoderadas. Esse é um dos objetivos da Escola do Mar: resguardar esse espírito de guardiões dessa cultura material e imaterial tão rica. Nós repassamos, mas é necessário que eles se apossem para fazer valer o que lhe é de direito”, enfatiza Silvana, lembrando que o conhecimento é a maior riqueza de uma comunidade, “mas precisa se tornar um bem comum e ser acolhido por todos para que seja preservado”.

O contato com o trabalho da Escola do Mar possibilitou à Silvana o resgate de sua própria história e essência. Filha do seu Maurino André Matias, pescador, e de uma mãe valente, que precisou se impor numa cultura machista, Silvana conta que os ranchos da Dona Odete Maria da Silva, sua mãe, faziam sucesso entre os pescadores, pois sempre havia uma panela de água quente, onde preparava uma sopinha de camarão ou o lambe lambe de mariscos, com arroz e temperos da terra. “Aquela comida quente era um afago para o corpo cansado do pescador”, relembrou.

Origens históricas

Acredita-se que os índios Carijó, da linhagem tupi-guarani, ocupavam a costa na região onde localiza-se, hoje, o município de Bombinhas (SC). Alguns vestígios de sambaquis (ou concheiros) foram identificados no decorrer da ocupação humana mais recente, porém não receberam a devida atenção dos gestores públicos e da própria comunidade, e acabaram se misturando às obras de infraestrutura e urbanização. Assim, os vestígios que poderiam narrar a trajetória dos povos indígenas sumiram do mapa, – e da história também – permanecendo apenas os relatos de que estavam presentes nas praias de Zimbros e de Canto Grande.

A partir das Grandes Navegações, a região do atual estado de Santa Catarina começou a receber embarcações portuguesas e espanholas, dando origem aos primeiros povoamentos. Já em 1527, os espanhóis aportaram na enseada de Zimbros (à época, chamada de São Vicente) e, em 1711, a expedição portuguesa comandada por Manoel Gonçalves de Aguiar aportou para garantir a posse das terras e explorar suas riquezas.

Juntamente com os colonizadores ericeiros e açorianos, cujos descendentes constituem o maior grupo da população local, as novas terras também começaram a receber os navios negreiros. Narra-se que a Praia Triste (uma das mais belas do município) era um ponto de recebimento e classificação da mão de obra escrava. A partir dali, eram enviados para os trabalhos de acordo com o perfil físico apresentado. Aos escravos que ficavam na região, cabia a tarefa de abrir o canal a partir da Barra da Praia da Lagoa, possibilitando a entrada das embarcações e o cultivo da terra para a alimentação.

Apesar de especulações, a origem do nome “Zimbros” continua sem uma definição concreta. Apresentamos, aqui, as duas possibilidades mais comuns. Diz-se que os colonizadores, ao desembarcar, encontraram uma planta semelhante às cupressaceae, do gênero Juniperus, cujas árvores e arbustos eram usados na fabricação de perfumes, aromatizantes e bebidas. O gim, por exemplo, é produzido a partir do zimbro em todo o Hemisfério Norte. Outra possibilidade seria o nome de um molusco univalve, o zimbo, cuja concha era usada como moeda entre os congoleses.

A família do seu Bileca, filho de pais escravos, descende dessa triste e lamentável parte da história brasileira. Seu Bileca nasceu liberto, em 17 de maio de 1906, e recebeu como nome de batismo Manoel Theodoro Moreira. Casado com Maria Delfísia da Silva, falecida em 1985, é um dos guardiões das memórias locais. Dona Delfísia era conhecida e procurada por toda a Costa Esmeralda (região que vai de Navegantes a Bombinhas), não apenas pelo poder de cura a ela atribuído, mas por seu profundo conhecimento das plantas e ervas medicinais.

Conhecimentos que correm o risco de desaparecer, caso não haja um movimento urgente de resgate do patrimônio imaterial resguardado pelos anciãos.

Da fartura das redes, às plantas nativas, a culinária local incorporou espécies como a mandioca, a batata doce e o amendoim, além de frutos como a banana, a goiaba, a laranja e a bergamota.

Da Mata Atlântica também saiu a madeira para a construção de casas e embarcações, bem como os cipós para a construção de cestos e utilidades domésticas, num fazer manual que conseguiu ultrapassar gerações. O tronco da Piteira do Caribe, depois de apodrecido e seco, continua sendo usado e, nas mãos de artesãos locais, ganha uma nova chance, virando decoração de casas e escritórios.

Assim, ao longo de mais de cinco séculos, pessoas foram se unindo e estabelecendo a base do povo e da cultura bombinense contemporânea, repassando os saberes ancestrais. Uma cultura que tem no mar seu ponto de chegada e partida, de alimento e de esperança, e que deseja crescer e se desenvolver, ancorada no espírito de resistência dos seus antepassados, sem perder a exuberância dos biomas locais.

Uma comunidade de pescadores

Quem anda pelas ruas do bairro de Zimbros facilmente vai se deparar com algum barco sendo construído ou reformado em algum terreno. E são eles, com suas diversas combinações de cores, que conferem charme especial à Baía de Zimbros. O município mantém sua vocação secular à pesca. A Colônia de Pescadores Z-22 possui cerca de 580 membros cadastrados. Do volume capturado pelos locais, cerca de 40% são absorvidos pelo comércio interno e os outros 60% seguem para os entrepostos de pescados de Itajaí.

Num passeio pela praia, ainda é possível acompanhar a chegada e partida dos barcos da pesca artesanal e identificar algumas construções que já foram ranchos de pesca ou de salga do pescado (antigamente, o peixe era limpo e salgado na praia mesmo, formando grandes varais), construídos ao longo da Baía de Zimbros.

Entre as edificações que resiste está o Restaurante Camarão da Praia, que também é um exemplo dos novos arranjos econômicos da população local. Foi um rancho de pesca, na época tocado pela Família Ramos, e há duas décadas atende moradores e turistas com pratos à base de pescados e temperos locais. Atualmente está sob o comando de Dilce, esposa de um pescador local, que fez questão de manter os temperos da dona Dirce, fundadora do restaurante e nora da dona Emília Ramos, com quem aprendeu os segredos da culinária tradicional.

Uma das iguarias oferecidas aos clientes são os filés de “misturinha”, que nada mais são do que os peixes de variadas espécies, entre elas a Maria Luiza, a Pescadinha e a Corvinota, que são capturados junto com o camarão, na pesca de arrasto. Em um certo momento da história, chegaram a ser desprezados, mas hoje são pratos saborosos, cuja matéria-prima vem das hábeis mãos das mulheres descascadoras de camarão, que processam o peixinhos, ao mesmo tempo em que aumentam a renda familiar e dão um nobre destino ao que um dia já foi descartado.

Seu Maurício Manoel Martins, de 46 anos, faz parte de uma tradicional família de pescadores e está no mar há três décadas. Falante e curioso, reconhece que já fez muita “coisa errada” no manejo da pesca, mais por ignorância do que intencionalmente, e afirma que sempre é tempo de aprender e aprimorar. Prova disto é que, hoje, é um dos fornecedores de “misturinha”, a fauna acompanhante da pesca de camarão, ao comércio local. Estima-se que para cada dez quilos de camarão consumidos no mundo, outros nove quilos de fauna sejam capturados e boa parte, devido ao tamanho ou falta de valor comercial, em vez de virar alimento para pessoas ou ração animal, são descartados no próprio mar.

Seu Maurício, um dos líderes da comunidade pesqueira, reconhece o valor da Escola do Mar para a preservação da memória local, transferência de novos conhecimentos e preservação de todo o ecossistema. Ele relata que, certa vez, voltando de um arrasto, foi repreendido pela filha adolescente, Bárbara Camila, quando preparava o lixo recolhido nas redes para devolvê-lo ao mar. Foi convencido pelo sólido argumento da filha, aluna da Escola do Mar, e não somente mudou a postura dentro da embarcação, como leva a lição aprendida aos demais companheiros de profissão.

O pescador é um dos muitos que entregam os resíduos à Escola do Mar para serem separados e classificados. As informações embasam pesquisas e os resíduos são reaproveitados nas aulas de manualidades ou seguem para descarte ambientalmente correto.

Semeando no mar

Há cerca de uma década, os pescadores de Bombinhas começaram a buscar alternativas mais viáveis para manter a atividade, sem esgotar os recursos naturais e com o menor impacto ao ecossistema. Com muita luta, as fazendas marinhas foram legalmente implantadas e, atualmente, o município é um dos três pólos de maricultura de Santa Catarina. Maricultores de Zimbros produzem, anualmente, 1.280 toneladas de mariscos e 18 mil dúzias de ostras.

Logo após o período de instalação das fazendas marinhas, localizadas nas laterais da baía, uma empresa multinacional descobriu a existência de um espaço reservado para futuras instalações de herdeiros maricultores e tentou se apropriar da área na surdina para futura reserva de mercado. A comunidade se uniu para barrar a apropriação e a intenção da empresa não prosperou. Vitoriosos no embate e mais fortalecidos para defender suas causas, os moradores de Zimbros seguem firmes.

Santa Catarina é o maior produtor de moluscos do Brasil, e realiza o monitoramento permanente das áreas de cultivo de moluscos bivalves por meio do Programa Estadual de Controle Higiênico Sanitário de Moluscos Bivalves, garantindo segurança alimentar para os produtores e consumidores.

E a Maricultura, que encontra nas águas da Baía de Zimbros, condições ideais, é uma das apostas do município para o seu desenvolvimento socioeconômico, pela capacidade de produção de alimento em alta escala, com baixo impacto ambiental.

Minha relação com o mar é de vida!

Com voz firme e segura, Bianca Lins da Silva Guilherme, descreve sua relação com Bombinhas e suas origens. De tradicional família de pescadores, incluindo o pai, e com mulheres descascadoras de camarão na ascendência, Bianca fez parte da primeira turma da Escola do Mar e, agora, aos 18 anos, retorna como voluntária.

“A Escola do Mar mudou a minha visão do mundo, ampliando meu olhar não apenas aqui na nossa região. Despertou o interesse pela questão dos saberes, da importância de conhecer a história dos antigos e cuidar da cultura para que não se perca”, reflete. A partir da Escola do Mar, Bianca começou a se envolver com atividades variadas voltadas à educação ambiental, que hoje fazem parte da sua rotina.

Aluna do primeiro período do curso de História, espera com a formação, mais do que uma carreira profissional: “quero ter a oportunidade de usar a futura profissão para ajudar o município a crescer”, considera. “A nossa geração está se desvinculando das tradições, por desconhecerem ou não estarem a fim de perpetuar. Precisamos ter pessoas que se interessem pela nossa história, mesmo que não sigam como pescadores. É importante aprender e repassar”, diz a jovem.

Pelo desenvolvimento sustentável dos Oceanos

A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, pela importância do tema, dedica o seu “Objetivo 14” à vida na água, visando a promoção da conservação e o uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos, para o desenvolvimento sustentável. Esforços globais e ações locais, realizadas em diferentes pontos do globo, se conectam nesta Década dos Oceanos, pois já não é mais possível pensar em vida na terra sem considerar a influência e importância fundamentais e cruciais do oceano no cotidiano.

Mais do que fonte de sustento e lazer, o Oceano, com sua malha de vida, regula a temperatura, estimula a chuva, leva e traz os ventos. São estradas entre as nações.

O compromisso com o Oceano deve ser de cada um de nós. No fazer diário, nas escolhas assertivas, e nas decisões que permeiam o desenvolvimento econômico, levando-se sempre em conta que, sem o oceano, não há possibilidade de vida em terra.

Que a Escola do Mar se multiplique como exemplo. E que a Praia do Cardoso, na Baía de Zimbros, atual objeto de desejo de um pequeno grupo afortunado, mantenha-se firme, sendo de todos e para todos!

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Reportagem produzida por Andréa Luiza Collet; Felipe Moura Marques; Luciano Moreira; e Silvana Maria Matias Leone para a disciplina de Biologia Marinha, da professora Laura Pioli Kremer, no curso de Pós-graduação em Ciências Marinhas Aplicadas ao Ensino, do Instituto Federal de Santa Catarina.