
Passados quatro meses de aulas após a entrada em vigor da lei que proíbe o uso de dispositivos móveis, como os celulares ou tablets, nas escolas de todo o país, os efeitos já são visíveis tanto no comportamento quanto no rendimento, nas relações e até na saúde mental dos alunos.
Na falta de um aparelho eletrônico, surgem cenas improváveis até pouco tempo atrás — fila para jogar xadrez no recreio, roda de conversa na hora do intervalo, livro na mão em vez de uma tela. Porém, especialistas alertam que também existe um outro lado da moeda: sintomas claros de abstinência digital, ansiedade, inquietação e uso excessivo fora do ambiente escolar.
A dependência digital, também conhecida como nomofobia, é reconhecida desde 2018 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um transtorno caracterizado pelo medo irracional de estar sem o celular ou outros aparelhos eletrônicos. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Alana e o Datafolha em setembro do ano passado mostra que 93% dos brasileiros concordam que as crianças e adolescentes estão se tornando viciados em redes sociais, enquanto 75% acreditam que eles passam tempo demais conectados.
Com a retirada abrupta dos aparelhos no cotidiano escolar, surgiram relatos crescentes de sintomas clássicos de abstinência digital: ansiedade, inquietação e irritabilidade, segundo apontou um levantamento da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), organização social vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), que colabora com programas de saúde digital em ambientes educacionais.
Uma pesquisa da Equidade.info, em parceria com a Frente Parlamentar de Educação da Câmara dos Deputados, ouviu 1.057 alunos do ensino fundamental e médio, 207 professores e 145 gestores de escolas públicas e privadas, urbanas e rurais, de todo o país entre fevereiro e maio deste ano. A iniciativa, que excluiu apenas unidades prisionais e socioeducativas por já proibirem celulares, tem 95% de confiança e busca ter dados de qualidade para apoiar políticas públicas voltadas para uma educação básica mais justa e igualitária no país.
Ela revelou que mais de 50% dos estudantes do Ensino Fundamental e quase dois terços dos alunos do Ensino Médio têm dificuldades em reduzir o tempo de uso das telas. Ou seja: tirar o celular da escola é um passo, mas o apego continua firme. Apesar do apoio de 76% dos professores e 82% dos gestores à medida de proibição, há consenso de que a adaptação não está sendo simples — mesmo que tenha benefícios a longo prazo.
A maioria dos alunos do Ensino Médio (63%) ainda leva o aparelho escondido ou mantém ele na mochila, esperando a hora de sair, todos os dias. Em contraponto, a pesquisa do Equidade.info mostrou que 69% dos alunos do Ensino Fundamental afirmam que nem sequer levam os celulares para a escola. Com os dados, fica claro que, para muitos, o dispositivo não é só um passatempo: é parte da identidade, rotina e pode até ser uma fuga ou segurança emocional.
A raiz do problema está em casa
A pesquisadora Elika Silva, da Universidade Federal de Santa Catarina, defende que o problema não nasce na escola. Ela é doutora em Educação, professora de tecnologia na Rede Municipal de Ensino de Florianópolis e pesquisadora do Núcleo Infância, Comunicação, Cultura e Arte da UFSC. Conforme explica, o uso excessivo do celular começa com a falta de regulamentação e monitoramento no ambiente familiar e é por isso que muitos estudantes sentiram a abstinência digital por terem a tecnologia fortemente integrada à rotina.
— Não se trata de um fenômeno isolado, mas um reflexo de um contexto mais amplo. Ou seja, o celular não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas também um espaço de pertencimento, entretenimento, informação e até mesmo de suporte emocional — elabora a pesquisadora.
Os efeitos negativos do uso excessivo de dispositivos, especialmente os celulares, não se limitam à saúde mental, mas também pode provocar: distúrbios de atenção, atrasos no desenvolvimento cognitivo e da linguagem, miopia, problemas no sono e até sobrepeso, conforme alerta o Ministério da Educação com base em uma pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Um dos caminhos para resolver a questão, segundo Elika, é reforçar a importância de abordagens pedagógicas nas escolas que promovam o uso consciente e crítico das tecnologias, especialmente em casa, além de ter espaços de escuta e acolhimento para os alunos.
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A psicóloga infantil Ana Claudia Zabel Schmitt reitera que o equilíbrio digital — o uso consciente dos aparelhos conciliado com um tempo de desconexão e atividades recreativas — é fundamental para o bem-estar das crianças e adolescentes. Porém, como conseguir chegar nesse balanço? Ela explica que não é o suficiente os pais estabelecerem regras e limites sobre o tempo de tela, por exemplo, também é necessário incentivar e participar ativamente em atividades alternativas, como esportes, hobbies e até leitura.— A criança e o adolescente aprendem muito mais por modelagem de comportamento do que por exemplos falados, seja isso na terapia, na escola ou pelos pais. Então, a forma como os pais lidam com a tecnologia também é limitante para como eles vão lidar. É preciso ler os livros novamente, ter um hábito saudável em família, como jantar sem uso de celular ou com a televisão desligada, fazer passeios em família… Há benefícios da desconexão digital e é preciso estabelecer um equilíbrio saudável em família — elabora.
Antes, os jovens faziam uso exacerbado dos celulares e, hoje, há a privação total dos aparelhos no ambiente escolar. Essa discrepância é o que pode causar a abstinência e a ansiedade. A recomendação da psicóloga é de que os pais tenham um diálogo sem julgamento para acolher e validar os sentimentos, além de reiterar a importância de reconhecer os sinais de ansiedade e ensinar os filhos a saberem como reagir.
— As famílias precisam estar atentas porque a gente vê muito a exposição de conteúdos inadequado, o isolamento digital e aí temos crianças, pré-adolescentes e adolescentes cada vez mais se privando de viver o mundo e as relações reais porque estão imersas dentro do celular e dos seus quartos — avisa Ana Claudia.
Uma pesquisa do Instituto Alana e do Datafolha, de setembro do ano passado, revelou que 92% dos entrevistados concordam que é muito difícil para crianças e adolescentes se defenderem sozinhos de violência e de conteúdos inadequados nas redes sociais. Porém, o uso dos dispositivos não deve ser tratado com tanto extremismo, conforme argumenta a psicóloga: embora o uso excessivo traga riscos ao desenvolvimento cognitivo, social e emocional de crianças e adolescentes, proibir completamente o acesso ignora o potencial dos aparelhos como ferramentas poderosas de aprendizado, socialização e acesso à informação.A proibição dos celulares nas escolas de Santa Catarina, apesar de causar estranheza no começo para muitos jovens, já dá sinais de que está funcionando positivamente. O ambiente ficou mais leve, mais voltado para o que realmente importa: aprender e conviver.
Cinco meses depois da implementação da lei que proibiu os celulares nas escolas de Santa Catarina, o saldo é claro: o ambiente escolar mudou — e para melhor. A ausência das telas escancarou um comportamento que andava soterrado sob notificações e feeds infinitos. Voltaram o barulho das conversas, as risadas espontâneas, os jogos improvisados, o olho no olho, e os professores relatam ganhos pedagógicos concretos. Porém, a transformação nas escolas, embora expressiva, não resolve sozinha um problema que nasceu fora delas. O vício em celulares, nutrido dentro de casa e muitas vezes incentivado pelos próprios pais, não desaparece somente pela privação no ambiente escolar.
Entenda mais sobre a lei
A Lei nº 15.100/2025, sancionada em janeiro deste ano, proíbe o uso de dispositivos eletrônicos portáteis e pessoais, como os celulares e tablets, em escolas públicas e privadas como um esforço para reforçar o foco no aprendizado e reduzir as distrações dos estudantes.
A norma restringe o uso dos aparelhos durante as aulas, intervalos e recreios, mas permite exceções para fins didáticos ou pedagógicos, sob orientação de professores ou coordenadores. Também podem ser usados para promover a inclusão e acessibilidade de alunos que tenham deficiência, problemas de saúde ou necessidades justificadas.
O Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina orientou as unidades escolares sobre os procedimentos a serem adotados e as diretrizes incluem elaborar políticas internas, formação continuada de professores e engajamento com a comunidade escolar.