Diante dos perigos da Covid-19, a maioria das pessoas tem aguardado ansiosa a chegada da sua vez de receber a vacina, principal recurso para evitar que uma eventual contaminação pelo coronavírus cause problemas graves à saúde. E no contexto da busca pela vacinação, um projeto de lei proposto em Santa Catarina tem chamado a atenção.
O PL 85/2021, de autoria do deputado estadual Valdir Cobalchini (MDB), propõe que as pessoas jurídicas de direito privado, como empresas, associações, fundações e outras entidades, possam adquirir as vacinas contra a Covid-19, seja para imunizar seus funcionários, seja para outras finalidades.
A proposta destaca que as vacinas devem ser reconhecidas internacionalmente e com taxa global de eficácia de, no mínimo, 50%, e que devem ter a autorização para importação e distribuição concedida pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
O deputado justifica o projeto: “nesta atual fase da imunização, consideramos essencial propor que à iniciativa privada seja permitido adquirir diretamente vacinas contra a Covid-19… pois devemos unir todos os esforços, de todos os setores da sociedade, para superarmos esta pandemia”, diz.
O projeto original não previa a doação de imunizantes ao SUS, mas uma emenda proposta pela Comissão de Saúde complementou o PL, instituindo que as vacinas sejam aplicadas de acordo com o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação até que os grupos prioritários estejam imunizados e que 50% das vacinas sejam doadas ao SUS.
A proposta foi aprovada em primeira votação na semana passada, passará por uma segunda votação e, depois, parte para a sanção do governador. Apesar disso, entidades e especialistas questionam a praticidade do projeto e as possíveis consequências dele.
Projeto é questionado do ponto de vista social e prático
O médico sanitarista Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), argumenta que projetos como o apresentado na Alesc, e que também tramitam em nível nacional, podem dar prioridade a grupos não previstos pelo Programa Nacional de Imunizações.
“Um projeto de lei desse tipo está rompendo com o critério de prioridade baseado no diferencial de risco, já que está estabelecendo critério de prioridade baseado na capacidade de gastos da empresa ao comprar vacinas”, argumenta Guimarães.
“Isso é ruim do ponto de vista da economicidade da saúde pública como é ruim do ponto de vista ético também. Quando você estabelece critério de vacinação que vá privilegiar empregados e empresas que têm condições de comprar a vacina, está introduzindo um elemento de prioridades diferente. Quem pode pagar, resolve seu problema”, complementa.
O médico também avalia que o projeto de lei pode ter pouco efeito prático. “Não tem vacinas para vender, não só porque a capacidade produtiva da vacina está praticamente esgotada como porque boa parte dos grandes fabricantes, nos contratos feitos com os governos, têm cláusulas que impedem a venda para outras entidades que não o governo”, explica.
Segundo ele, a CoronaVac e a AstraZeneca, aplicadas atualmente no Brasil, contam com esse tipo de cláusula nos contratos firmados com o país. “Não tem vacina sobrando no mercado que possa ser comprada e, mesmo que tivesse, boa parte das grandes empresas não pode vender”, complementa.
Eduardo Macário, superintendente de Vigilância em Saúde de Santa Catarina, também avalia que a falta de vacinas no mercado deve dificultar a eficácia do projeto.
“Nesse momento, há falta de disponibilidade da vacina global e a prioridade é para os países vacinarem suas populações de forma integral. A partir do momento que o país vacine pelo Programa Nacional de Imunização, que faz parte do SUS, e a população adulta esteja vacinada, os setores privados podem adquirir sem problema nenhum a vacina”, afirma.
Deputado afirma que projeto é ético e pode ser aplicado na prática
Por meio de sua assessoria, o deputado estadual Valdir Cobalchini, autor da matéria na Alesc, afirma que o projeto não possui violação ética e que pode ser eficiente na prática.
“O projeto segue rigorosamente o Plano Nacional de Imunização. E o PNI é claro: enquanto estiver em curso a vacinação de grupos prioritários, todas as vacinas adquiridas pelo setor privado devem ser doadas ao Ministério da Saúde. Sendo assim, não há nenhuma violação ética”.
Sobre a questão prática, argumenta: “realmente, há um problema em escala global para a compra de imunizantes. Entretanto, o setor privado, um dos principais demandantes pelo projeto, tem larga experiência com operações de importação. E este é o diferencial que pode agilizar a compra”, fala.
Segundo ele, há outras vacinas disponíveis no mercado. “Lembrando que apenas a China conta com quatro vacinas já aprovadas por seu governo: duas da Sinopharm, uma da CanSino (essa foi aplicada em militares) e uma da Sinovac (a que o Butantan produz). A Índia produz a Covaxin. Isso pra ficar apenas naquelas vacinas menos conhecidas do grande público. Então, mesmo na questão prática e contando com a expertise do setor privado, é possível contornar a falta de oferta e atender a demanda, ao menos no médio prazo. E pensando também no médio prazo é que nossa lei foi criada”, explica.
Compra de vacinas por empresas também tramita em nível nacional
Além do projeto apresentado em Santa Catarina, outra proposta sobre o mesmo tema tramita em nível nacional. Em março deste ano, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou uma lei que permite que pessoas jurídicas de direito privado adquiram vacinas, mas que doem integralmente os imunizantes ao SUS até o término da imunização dos grupos prioritários.
Agora, um novo projeto de lei, que já foi aprovado pela Câmara dos Deputados e aguarda votação no Senado, quer alterar a legislação para que as pessoas jurídicas de direito privado possam comprar as vacinas e doá-las integramente ao SUS ou comprar as vacinas para aplicá-las exclusiva e gratuitamente nos funcionários e doar a mesma quantidade ao SUS sem observar o andamento do PNI.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, publicou nota técnica argumentando que o projeto ofende os princípios constitucionais da moralidade e da solidariedade, além do direito fundamental à saúde.
“O ‘ganho’ de 50% das vacinas, que obrigatoriamente seriam doadas à União, enquanto não vacinados todos os grupos prioritários, é, na verdade, uma ‘perda’ de 50%. Ao permitir a utilização dos imunizantes antecipadamente aos critérios previstos no PNO, privilegia-se o poder econômico e institucionaliza-se, por lei, uma nova – e predatória – fila de vacinação”, diz a nota.